martes, 21 de julio de 2009

Identidade sacerdotal e formaçao inicial e permanente à luz documento de Aparecida

Por: Monseñor Sergio da Rocha
Arcebispo de Teresina (Brasil) e
Presidente do Departamento de Vocações e Ministérios do CELAM


1. A formação de presbíteros “discípulos missionários de Jesus Bom Pastor”
O Documento de Aparecida considera a “identidade teológica do ministério presbiteral” como o “primeiro desafio”(193) ou a primeira das “situações que afetam e desafiam a vida e o ministério dos presbíteros”(192). Para tanto, ao tratar explicitamente desta questão, situa o “sacerdócio ministerial” em relação ao sacerdócio de Cristo, alertando para que o presbítero não seja considerado “somente mero delegado ou representante da comunidade” (193).
Ao longo do texto, vários outros elementos configuram a compreensão da identidade presbiteral, em Aparecida, que pode ser resumida na rica expressão: “presbíteros, discípulos missionários de Jesus Bom Pastor” (5.3.2). A ênfase de Aparecida no discipulado e na missão, válida para todos os batizados, tem sua especificidade na formação sacerdotal. ”A espiritualidade que se promove deverá responder à identidade da própria vocação, seja diocesana ou religiosa” (319). A formação permanente deve “privilegiar a espiritualidade específica” dos sacerdotes (200). Todos são chamados ao discipulado e a missão, mas nem todos do mesmo modo. A expressão “discípulos missionários com vocações específicas” (5.3) contempla a rica diversidade das vocações e, por conseqüência, a necessidade de se considerar o específico de cada vocação, condição indispensável para o discernimento vocacional e a orientação do processo formativo.
A identidade e missão dos presbíteros são compreendidas “`a imagem do Bom Pastor”, mediante a “caridade pastoral, fonte da espiritualidade sacerdotal”, que “anima e unifica sua vida e ministério” (198). Aparecida enfatiza a “necessidade” de “presbíteros-discípulos”, “presbíteros-missionários”, “presbíteros-servidores da vida”, “presbíteros cheios de misericórdia” (199), assim como, de “párocos, animadores de uma comunidade de discípulos missionários” (201). Ó presbítero “é chamado a ser homem de misericórdia e compaixão, próximo a seu povo e servidor de todos, particularmente dos que sofrem grandes necessidades” (198). Por isso, o processo formativo a ser oferecido, com suas várias dimensões, deve ser “centrado em Jesus Cristo Bom Pastor” (319).
Ao lado desta referência fundamental ao Bom Pastor e à caridade pastoral, é indispensável na identidade presbiteral o cultivo do amor pela Igreja Particular, exercendo o seu ministério “em comunhão com o bispo e demais presbíteros da diocese” (195), de modo a “valorizar a pastoral orgânica e se inserir com gosto em seu presbitério” (cf. 198). Assim sendo, ao empregar os termos “presbítero” e “presbiteral” na compreensão da identidade sacerdotal, Aparecida realça a importância da pertença ao “presbitério”, da comunhão fraterna e da inserção na diocese.

2. A formação sacerdotal numa Igreja em estado permanente de missão
Formar discípulos missionários numa Igreja em estado permanente de missão é a perspectiva central de Aparecida, a partir da qual brotam as demais orientações pastorais e as propostas para a formação sacerdotal. O Documento afirma que “os seminários e as casas de formação constituem espaço privilegiado – escola e casa – para a formação de discípulos e missionários” (316). A formação permanente dos presbíteros também deverá ser programada nesta perspectiva.
Os números de Aparecida que se referem explicitamente aos seminários e casas de formação (314-327) estão justamente no capítulo VI, intitulado “O caminho de formação dos discípulos missionários” (240-346), sendo precedidos pelo tema iluminador sobre “o processo de formação dos discípulos missionários” (276-285). À luz do que aí se apresenta, fica muito claro que a finalidade da formação nos Seminários não é simplesmente a de formar padres executores de tarefas ou apenas capacitar para a prática pastoral, mas é, acima de tudo, a de formar presbíteros, que sejam verdadeiros discípulos missionários. O seminário deve proporcionar a vivência cotidiana do discipulado em vista da missão, formando discípulos missionários com o coração do Bom Pastor. A “firme decisão missionária” proposta por Aparecida “deve impregnar todas as estruturas eclesiais (....), qualquer instituição da Igreja” (365); portanto, inclui os seminários e casas de formação. A ênfase nesta perspectiva missionária implica em conceber a formação pastoral dos futuros e atuais presbíteros como formação pastoral-missionária.
Embora os aspectos do discipulado e da missão já fossem contemplados antes de Aparecida, aí os encontramos de modo explícito e com tal ênfase, que se tornam critérios fundamentais para avaliação da formação oferecida. Fazer discípulos missionários, no contexto da vocação sacerdotal, torna-se critério de discernimento e avaliação do trabalho desenvolvido no seminário. Por isso, temos a tarefa de rever ou aprofundar as metodologias em curso, de modo a concretizar ou revitalizar este novo-antigo horizonte no conjunto da formação sacerdotal.



3. Formar presbíteros “discípulos” de Jesus Cristo: o processo formativo como discipulado
Para se formar presbíteros pastores e missionários, é preciso formar discípulos, que façam a experiência do encontro com Cristo, no dia-a-dia do Seminário, percorrendo um itinerário de formação marcado pela conversão e pela comunhão fraterna em vista da missão. “’É fundamental que durante os anos de formação os seminaristas sejam autênticos discípulos” (319). Aparecida destaca cinco aspectos do processo de formação dos discípulos missionários que podem iluminar e orientar também as diversas etapas do caminho da formação sacerdotal: “o encontro com Jesus Cristo, a conversão, o discipulado, a comunhão e a missão” (278).
O seminário, antes de ser escola que ensina a fazer discípulos, deve ser casa e escola de vivência do discipulado, através da experiência de convivência dos discípulos com o Mestre e de convivência fraterna entre discípulos. O discípulo se define em primeiro lugar pela referência ao Mestre, do qual se torna seguidor, em tempo integral, através da convivência pressuposta no “Vinde e vede” (Jo 1,39). Para possibilitar um autêntico discipulado, o seminário deverá proporcionar um “verdadeiro encontro pessoal com Jesus Cristo na oração com a Palavra, para que estabeleçam com Ele relações de amizade e amor” (319). Assim como na catequese, a finalidade da formação é “colocar alguém em contato com Jesus Cristo” (288) e não apenas colocar em contato com idéias, pois o que se quer é formar testemunhas, anunciadores, não de meras idéias, mas daquele que é “o Caminho, a Verdade e a Vida”. Assim sendo, a formação espiritual ocupa lugar central no itinerário a ser percorrido.
Entretanto, o apelo à experiência não deve levar a um paradigma subjetivista, onde o sentimento e o psiquismo são sobrevalorizados. Atitudes concretas de conversão e vida nova expressam a autenticidade da experiência do encontro com Cristo.
Além disso, é necessário explicitar o aspecto da comunhão fraterna inerente ao discipulado. “A Igreja necessita de sacerdotes e consagrados que nunca percam a consciência de serem discípulos em comunhão” (324). Discípulos vivendo em comunhão, seja na comunidade formativa, seja no presbitério ou na comunidade paroquial. “O tempo da primeira formação é uma etapa onde os futuros presbíteros compartilham a vida, a exemplo da comunidade apostólica ao redor do Cristo Ressuscitado” (316). Daí, a importância da vida comunitária na formação inicial, mas também, na formação permanente. Por isso, “’é indispensável confirmar que os candidatos sejam capazes de assumir as exigências da vida comunitária, o que implica diálogo, capacidade de serviço, humildade, valorização dos carismas alheios, disposição para se deixar interpelar pelos outros, obediência ao bispo e abertura para crescer em comunhão missionária com os presbíteros, diáconos, religiosos e leigos, servindo à unidade na diversidade” (324).
Além da formação espiritual, é indispensável proporcionar a formação humano-afetiva, pois o presbítero é pessoa humana, que necessita de desenvolvimento e amadurecimento humano-afetivo. Para formar presbíteros capazes de assumir com integridade a identidade sacerdotal e exercer o seu ministério com fidelidade, torna-se cada vez mais necessária no contexto sócio-cultural em que vivemos a formação humano-afetiva. O processo formativo deverá proporcionar aos candidatos ao sacerdócio tal “amadurecimento afetivo que os faça aptos para abraçar o celibato e capazes de viver em comunhão” (317). Sendo este um dos desafios mencionados por Aparecida para a vida e o ministério presbiteral (cf. 193 e 195), é preciso continuar a dar-lhe especial atenção também na formação permanente, de modo que os presbíteros possam “assumir com maturidade a própria afetividade e sexualidade, vivendo-as com serenidade e alegria no caminho comunitário” (196).

4. Formar presbíteros “missionários” de Jesus Cristo
A formação pastoral de caráter missionário decorre da própria identidade presbiteral, sendo ainda mais exigida na Igreja em estado de missão. “As experiências pastorais discernidas e acompanhadas no processo formativo, são sumamente importantes para confirmar a autenticidade das motivações no candidato e ajudá-lo a assumir o ministério como verdadeiro e generoso serviço, no qual o ser e o agir, pessoa consagrada e ministério, são realidades inseparáveis” (322). A vivência da espiritualidade sacerdotal pelos presbíteros ocorre no exercício do próprio ministério.
É preciso capacitar os futuros e atuais presbíteros para enfrentar os desafios pastorais. Devem estar bem preparados para atuar nas comunidades paroquiais e para responder, com espírito missionário, aos desafios pastorais emergentes dos novos campos ou situações de missão. Por isso, é necessário “oferecer formação intelectual séria e profunda, no campo da filosofia, das ciências humanas, e especialmente da teologia e da missiologia, a fim de que o futuro sacerdote aprenda a anunciar a fé em toda a sua integridade, fiel ao Magistério da Igreja, com atenção crítica ao contexto cultural de nosso tempo e às grandes correntes de pensamento e de conduta que deverá evangelizar” (323). Contudo, considerando a perspectiva de formação de discípulos missionários, a capacitação pastoral jamais poderá ser concebida como simples formação de técnicos ou especialistas em práticas pastorais. A competência pastoral que se exige pressupõe a condição de discípulo missionário; não a substitui; antes, dela resulta.
Aqui se coloca a necessidade de acolhida e participação na Missão Continental, proposta pela Conferência de Aparecida (551) como ocasião privilegiada de cultivo da comunhão eclesial, da espiritualidade missionária e da formação pastoral. Os seminários e casas de formação da América Latina e Caribe não podem ficar de fora da Missão Continental; ao contrário, devem deixar-se por ela interpelar, estimulando a sua acolhida por meio da oração, do estudo e da reflexão, assim como, pela participação em atividades pastorais compatíveis com a dinâmica da vida comunitária. Os presbíteros devem se empenhar generosamente na Missão Continental.
A formação para a vivência da caridade pastoral, segundo as atitudes e sentimentos do Bom Pastor, se expressa, de modo especial, na “opção preferencial pelos pobres” (391). Considerando-se o desafio representado pelos graves problemas sociais que atingem os povos da América Latina e Caribe, é importante cultivar a experiência do encontro com Cristo “nos pobres, aflitos e enfermos” (257), aos quais os presbíteros deverão servir com especial atenção e caridade pastoral (391-399), defendendo e promovendo a vida e a dignidade inviolável da pessoa humana (464-469).
Aparecida refere-se à “formação inculturada”, considerando-se a realidade dos “jovens provenientes de famílias pobres ou de grupos indígenas” de modo a não “perder suas raízes” e para que “possam ser evangelizadores próximos aos seus povos e culturas” (325). Portanto, a delicada questão da formação inculturada é mencionada destacando-se a sua motivação pastoral, isto é, tendo como finalidade a preparação para exercer a missão evangelizadora em meios culturais específicos, a partir das próprias origens e experiências.
Os seminaristas e os presbíteros devem acolher a “conversão pastoral” (370) e a “renovação missionária” (365), propostas por Aparecida, com especial atenção e empenho. A diocesaneidade, que caracteriza a identidade do presbítero diocesano, não se opõe ou exclui a missionariedade; ao contrário, é por ela exigida e completada, a começar pela solicitude em atender as necessidades pastorais da Igreja local até chegar à disponibilidade missionária além-fronteiras da diocese, rumo à missão ad gentes, como autênticos “discípulos missionários sem fronteiras” (376).
5. A formação sacerdotal como processo permanente e integral
A visão de formação no Documento de Aparecida é claramente a de um processo gradual e contínuo, já pressuposta na noção de discipulado. “É oportuno indicar a complementaridade entre a formação iniciada no Seminário e o processo de formação que abrange as diversas etapas da vida do presbítero. É necessário despertar a consciência de que a formação só termina com a morte” (326). A formação permanente pressupõe a aceitação da condição permanente de discípulos, que começa muito antes do ingresso no seminário ou casa de formação religiosa, no próprio batismo.
A etapa anterior a entrada no Seminário e a etapa posterior são muito importantes para a formação sacerdotal. Não se pode exigir apenas da etapa do seminário. Neste processo, “ocupa lugar particular a pastoral vocacional” que muito contribui para a descoberta e o acompanhamento vocacional (314) e faz-se “urgente dedicar cuidado especial à promoção vocacional, cultivando os ambientes onde nascem as vocações ao sacerdócio e à vida consagrada” (315), “não devendo faltar orações especiais ao Senhor da Messe”, em cada diocese (314). Antes do ingresso no Seminário, tem importância decisiva uma “esmerada seleção dos candidatos que leve em consideração o equilíbrio psicológico de personalidade sadia, motivação genuína de amor a Cristo, à Igreja, e ao mesmo tempo capacidade intelectual adequada às exigências do ministério no tempo atual” (318). Antes ainda, a iniciação cristã ocupa papel condicionante no processo formativo.
Para promover a continuidade da formação sacerdotal após o período do Seminário, a Conferência de Aparecida recomenda que “as Dioceses e Conferências Episcopais desenvolvam uma pastoral presbiteral que privilegie a espiritualidade específica e a formação permanente e integral dos sacerdotes” (200).
Ao referir-se ao processo de formação dos discípulos missionários, Aparecida menciona as dimensões “humana e comunitária, espiritual, intelectual, pastoral e missionária” (cf. 280 a-d). Ao falar da formação dos futuros presbíteros, afirma que “é necessário um projeto formativo do seminário que ofereça aos seminaristas um processo integral: humano, espiritual, intelectual e pastoral, centrado em Jesus Cristo Bom Pastor” (319). Ao tratar da formação continuada dos presbíteros, Aparecida emprega a expressão “formação permanente e integral” (200).
Estas dimensões da formação correspondem a exigências essenciais da identidade e missão dos presbíteros, devendo ser conjugadas harmonicamente em cada etapa. Deste modo, evitam-se reducionismos, quando um aspecto da formação passa a ser absolutizado, segundo o perfil dos formadores ou por outros fatores particulares, em detrimento dos demais. Neste âmbito, três tarefas urgentes podem ser destacadas. A primeira refere-se à necessidade de planejar a formação permanente incluindo todas as referidas dimensões. A segunda é a de sistematizar o processo formativo nos seminários, definindo melhor os passos e as etapas a serem percorridos em cada uma das dimensões, e não apenas na formação intelectual. A terceira é a necessidade de formar formadores para a etapa do seminário e também para a formação permanente. O empenho e a responsabilidade pessoal são indispensáveis, na formação inicial e mais ainda, na formação permanente. Contudo, a formação sacerdotal requer atenção, empenho e apoio, da parte do bispo, do presbitério e das comunidades. O papel dos formadores é de máxima importância. Aparecida reconhece “o esforço dos formadores dos Seminários”, afirmando a importância do seu “testemunho e preparação como fatores decisivos para o acompanhamento dos seminaristas” (317). Por isso, reconhece também a ajuda eficaz dos “cursos de formadores que se têm implementado” (317), expressando assim estímulo para a formação dos atuais e de novos formadores.
Os formadores também são chamados a assumir a condição de discípulos missionários, aproveitando o trabalho que desempenham como ocasião privilegiada para continuar a sua própria formação nos vários níveis. Para formar presbíteros que vivam e trabalhem unidos, é fundamental o testemunho de comunhão fraterna e eclesial dos próprios formadores em meio aos formandos, demonstrado especialmente pela convivência cordial e pelo trabalho em equipe.
Neste campo de especial importância para a vida da Igreja, os formadores, assim como, os seminaristas e presbíteros, contam com o exemplo e a intercessão materna de Maria. A Conferência de Aparecida, realizada justamente no santuário mariano do mesmo nome, recomenda que “ao longo da formação”, procure-se “desenvolver amor terno e filial a Maria” (320), “discípula missionária” (266), acolhendo-a em casa, como discípulos amados do Senhor.
A formação sacerdotal, no Documento de Aparecida, merece especial atenção pela importância que aí ocupa e pela urgência do trabalho vocacional neste tempo de renovado impulso missionário da Igreja na América Latina e Caribe. Importância esta a ser reconhecida não apenas pelos que atuam neste campo da vida eclesial, mas por todos os discípulos missionários com vocações específicas, confiantes no Senhor da Messe que chama ao discipulado e envia em missão.

+ Sergio da Rocha – Arcebispo de Teresina (Brasil) e Presidente do Departamento de Vocações e Ministérios do CELAM

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